Kenneth Goldsmith, do UbuWeb: 'O site é muito ruim'
Criador do site UbuWeb, o poeta conceitual Kenneth Goldsmith diz que a
arte atual não leva em consideração as transformações sociais
produzidas pela tecnologia digital. Por telefone, de Nova York, ele
conversou com O GLOBO sobre a criação artística no mundo atual.
O UbuWeb usa muito o termo "vanguarda" para definir as obras de seu
acervo. Essa é uma expressão em geral tida como datada. Como você a
entende?
KENNETH GOLDSMITH: Nos anos 1980 era proibido falar em vanguarda,
porque o termo tinha conotações modernistas, patriarcais. Aquela
definição de vanguarda era tão estreita que hoje, na verdade, ninguém
liga mais para ela. O Ubu tende a ser uma abordagem revisionista da
vanguarda, marcada, em contraste com a outra, pela impureza.
Você organizou recentemente um livro sobre poesia conceitual, onde diz
que ainda pensamos a arte nos termos românticos estabelecidos no
século XIX por autores como William Wordsworth. Qual o problema dessa
concepção de arte?
GOLDSMITH: A maior parte da produção artística ainda está presa a
ideias de gênio e originalidade. Não acho que a arte atual leve em
consideração que vivemos uma idade digital, na qual o que fazemos é
menos importante do que a maneira como distribuímos o que é feito. Num
mundo eletrônico, a pessoa que pode apontar a melhor informação é mais
poderosa do que a pessoa que faz a melhor informação. É uma inversão,
por isso gosto de falar de "não criatividade" ("uncreativity"). Se
você pensar por exemplo em algo como o Boing Boing... Eles são o blog
mais poderoso da internet, mas não criam nada. Apenas apontam o que
você deve ver, e são mais poderosos do que qualquer coisa para a qual
apontem.
Além da questão criativa, você vê uma oposição entre o mercado de
arte, que movimenta bilhões, e o que um projeto como o UbuWeb faz?
GOLDSMITH: Sim. O UbuWeb se opõe a esses modelos. O UbuWeb não sente
que esses modelos sejam contemporâneos. O poder está no múltiplo e
distribuído, não no escasso e único.
A arte pode escapar a essa lógica de mercado?
GOLDSMITH: Não acho que os artistas hoje se coloquem essa pergunta.
Enquanto o mercado funcionar, não há motivo para se questionarem. O
que acho que vai acontecer é que cada vez menos pessoas vão se
interessar por isso. As obras de arte vão acabar como antiguidades,
raridades, e o resto do mundo vai em frente. Isso é triste. O campo
artístico sempre foi aquele que nos deu novas ideias e hoje acho que
isso se inverteu, a cultura mainstream está muito à frente. Às vezes
vou a uma galeria de arte e sinto que estou em 1981.
Embora fale em "não criatividade", você mal ou bem tem uma obra, não?
GOLDSMITH: A única coisa e a melhor que um artista pode fazer é
conseguir enunciar em seu trabalho o tempo e condições sob as quais
vive. E se pode comunicar isso por meio do seu trabalho, iluminar
isso, acho que então o trabalho é bem sucedido, porque é
contemporâneo. É o melhor que pode fazer. Não estou buscando a
eternidade aqui.
Que itens do acervo do UbuWeb você ficou particularmente feliz de
obter?
GOLDSMITH: Não saberia dizer, nem lembro de tudo que está online. O
site é muito ruim, porque é na maior parte reflexo do meu gosto. É
muito tendencioso, não sou um grande historiador de arte. Como ninguém
mais faz algo assim, ele tornou-se institucionalizado, como nunca quis
que fosse. O site é um desafio para que outros façam do jeito certo.
Já pensou isso feito por historiadores da arte, do cinema, pelo MoMA?
Seria muito melhor.
Por que não é feito?
GOLDSMITH: Direitos autorais. Ninguém faz algo assim, por medo de ser
processado.
Receba este blog Permalink.Envie.Compartilhe ...Comente Ler
comentários (0) ....Enviado por Miguel Conde - 26.3.2011| 9h40m.
Vanguarda da pilhagem: roubo e arte no UbuWeb
Roubo, plágio e pilhagem de textos são as principais técnicas
ensinadas pelo poeta Kenneth Goldsmith aos alunos das suas oficinas de
escrita não criativa na Universidade da Pensilvânia. Seus métodos
literários, ele afirma, são os mais adequados a uma época em que a
principal arte popular é o arquivamento de dados (em computadores,
celulares ou servidores online), e na qual "a pessoa que pode apontar
a melhor informação é mais poderosa do que a pessoa que faz a melhor
informação". Descritos por ele próprio como "chatos" e "ilegíveis", os
livros de Goldsmith a rigor não são escritos, mas antes transcritos.
"The Weather" (2005) reúne um ano de boletins meteorológicos ouvidos
no rádio; "Soliloquy" (2001), tudo que Goldsmith disse durante uma
semana; "Day" (2003), uma edição inteira do "New York Times".
— Mandei um exemplar para o jornal, na esperança de ser processado,
mas não deu certo — diz Goldsmith de Nova York, onde vive. — A questão
central com os direitos autorais é o dinheiro. Posso "roubar" o que
quiser porque minha poesia não dá lucro.
O mesmo acontece com a mais espetacular obra arquivística de
Goldsmith — o site UbuWeb, uma página criada por ele em 1996 e que
hoje reúne o maior acervo de arte de vanguarda na internet. De James
Joyce lendo "Finnegans Wake" a um longa-metragem dirigido pelo músico
John Cage, o UbuWeb possui um conjunto de milhares de vídeos, áudios e
textos que dificilmente podem ser encontrados em outro lugar. A
coleção do site cresce rápido porque Goldsmith publica primeiro e
resolve depois, na conversa, as reclamações ocasionais.
— Ele acredita que não precisa pagar direitos autorais, e acho que
está certo — afirma a crítica literária americana Marjorie Perloff,
professora emérita de Stanford. — O site dá acesso grátis e universal
a obras que estavam sumidas ou eram itens de colecionador.
Para a crítica de arte da revista "The New Yorker", Andrea K. Scott, o
site é mais do que um arquivo virtual:
— O UbuWeb desafia definições. É muitas coisas para muitas pessoas. É
o mapa e o território. É a água e a onda. É uma obra de arte se você
disser que é.
Não existe no mundo um acervo de arte moderna e contemporânea ao mesmo
tempo tão extenso e acessível quanto o do UbuWeb, que nasceu dedicado
à poesia concreta e até hoje reúne textos de Haroldo e Augusto de
Campos, Décio Pignatari e José Lino Grünewald, além de músicas de
Caetano Veloso. Visitada por pesquisadores e artistas, incluída na
bibliografia de cursos universitários, citada no "Guardian" e no "New
York Times", a página ganhou uma importância que contrasta com a
maneira um tanto informal como foi construída.
— É um recurso indispensável, mas que tecnicamente infringe muitos,
muitos direitos autorais — resume o crítico e historiador Darren
Wershler, que prepara um livro sobre o site. — A sobrevivência do
UbuWeb pode em boa parte ser atribuída à personalidade de Goldsmith.
Ele tem a audácia de continuar adicionando novo material, e o charme
para convencer a maioria das pessoas irritadas que escrevem pedindo
que ele tire algo do ar.
Apesar da relativa notoriedade, o site faz o possível para não
aparecer muito no radar. Para diminuir problemas com direitos
autorais, Goldsmith resolveu excluir o UbuWeb (cujo nome faz
referência ao personagem Ubu, das peças do escritor francês Alfred
Jarry) do cadastro do Google. Uma busca por "John Cage" no acervo do
UbuWeb retorna 191 resultados. Mas quem procurar obras de Cage pelo
Google não encontrará nenhum link direto para o UbuWeb. De certa
maneira, hoje é preciso saber que o site existe para encontrá-lo,
embora ele continue registrado "em todos os buscadores ruins", como
diz Goldsmith, em referência a serviços como Bing, Altavista etc.
Cinco meses atrás, a página foi derrubada por hackers, o que fez com
que Goldsmith mudasse seus provedores para o México. A queda foi
comemorada numa lista de discussão online por um grupo de cineastas,
segundo Goldsmith a "classe" que mais reclama do site:
— Eles são o que mais sofrem com a transição para a internet, passam
de uma tela enorme numa sala escura para um quadro pequeno num
monitor.
Em geral, no entanto, o site conta com uma boa vontade que não pode
ser atribuída apenas à lábia de seu criador. É o que se percebe pela
história de um dos itens mais curiosos no acervo do UbuWeb: um
documentário sobre os efeitos alucinógenos da mescalina e do haxixe
dirigido pelo cineasta Eric Duvivier em colaboração com o poeta
francês Henri Michaux. Autor de livros em que registrava suas
experiências psicodélicas, Michaux ficou insatisfeito com o resultado
final do filme, feito por encomenda de uma empresa farmacêutica.
Depois de algumas exibições, o poeta se opôs à circulação da obra. O
filme passou décadas desaparecido, até aparecer um dia no UbuWeb. Um
representante do legado de Henri Michaux ficou sabendo — mas deixou
passar porque gostava do site.
Quando a reputação não basta, Goldsmith faz o possível para
"transformar inimigos em amigos". Uma das pessoas a passar por essa
conversão foi Yoko Ono. Os advogados da viúva de John Lennon entraram
em contato com o site em 2002, quando Goldsmith botou no ar as dez
edições da revista multimídia "Aspen". Cada número da revista,
publicada entre 1965 e 1971, vinha numa caixa com folhetos, cartões,
pôsteres e discos. Um desses discos trazia obras experimentais de
Lennon e Yoko, como uma faixa em que Lennon tentava criar uma melodia
apenas mexendo no botão de volume de um rádio, e uma colaboração em
que os dois musicavam notícias de jornal sobre eles mesmos.
— Após algum diálogo, Yoko deu permissão para mantermos os arquivos —
diz Goldsmith. — Esse tipo de coisa acontece o tempo todo no Ubu. É
uma noção flexível de direito autoral, improvisada, com base na
confiança. Todos saem ganhando.
Explorar as obras que estavam desaparecidas, ou tinham uma circulação
mínima, até serem recuperadas pelo site é se dar conta de quanto da
arte do século XX, em aparência tão próxima e familiar, já caiu numa
área de sombra conhecida apenas por especialistas, ou nem isso. Em
suas dez edições, a "Aspen" publicou textos de Roland Barthes e
Marshall McLuhan, composições de John Cage e Lou Reed, e teve uma de
suas caixas criada por Andy Warhol. Mas até aparecer no UbuWeb, a
revista só podia ser achada na coleção de um punhado de bibliotecas
públicas. Mesmo a obra de artistas canônicos tem lados menos óbvios
registrados ali. Conhecido por suas colagens, o alemão Kurt Schwitters
aparece no site com uma série de poemas sonoros, entre eles uma sonata
fonética em quatro movimentos, ignorados em seu catalogue raisonné,
que se dedica apenas à sua obra visual. Algo parecido acontece com os
experimentos musicais do pintor Jean Dubuffet, estranhas misturas de
jam sessions com recitais de poesia.
— O site mostra que existe toda uma tradição da vanguarda a ser
estudada com mais cuidado — diz o dramaturgo Mac Wellman, que deu um
curso sobre o UbuWeb no Brooklyn College. — Ali você encontra uma
história diferente do que é a cultura moderna.
A noção de "vanguarda" usada no site é elástica e inclui de etnopoesia
a obras contemporâneas. Uma seção intitulada "Outsiders" reúne poemas
apócrifos colados em orelhões de Nova York no começo dos anos 1990 e
panfletos nonsense distribuídos pela cidade que atribuíam a uma
organização secreta chamada A Ordem Antiga a responsabilidade pelo
bombardeio de Pearl Harbor e pela morte de Bruce Lee, entre outras
coisas.
A crítica Marjorie Perloff diz que um dos méritos do site é botar o
termo vanguarda mais uma vez em circulação, desafiando as interdições
de historiadores e teóricos da arte:
— Todos esses termos, modernismo, vanguarda, pós-modernismo, se
baseiam em distinções muito escorregadias. Muitas pessoas se opõem ao
termo vanguarda, pensam que soa elitista. Mas é claro que é elitista,
sempre foi. O UbuWeb é fundado nessa crença, de que precisamos de um
site que não vai se dedicar apenas ao que agrada à média das pessoas.
--
Essa mensagem foi postada no grupo: http://groups.google.com/group/gtculturadigital?hl=pt?hl=pt-BR
Esse grupo está ligado ao Movimento Cultura Digital:
http://culturadigital.br/movimento
0 comentários:
Postar um comentário